Ao meu recente movimento de resenhar longas-metragens de colegas de turma da faculdade veio uma grande deixa pra falar de outro que estreou no streaming tem um tempo e não comentei, mas, graças a um acordo entre TV Globo e Netflix pra exibição de produções da plataforma, conseguiu um cartaz maior ainda: segunda-feira passada, 10 de julho de 2023, a Tela Quente exibiu Cabras da Peste, produção da Glaz Entretenimento lançada em 2021 com boa repercussão, dirigido por Vitor Brandt e roteirizado por ele e Denis Nielsen - dupla parça desde os tempos de USP.
A bem da verdade, não é o primeiro filme do AV 2002 exibido na TV aberta: em outubro de 2017, a Band exibiu Copa de Elite, também roteirizado e dirigido pelo Vitor, mas neste fui relapso e ainda não assisti - diferente de Cabras, sobre o qual tenho bastante a comentar.
Primeiramente, é emblemático que ele seja exibido pela Globo, sobretudo, pela produção brincar com os buddy cops, os filmes de "dupla de tiras", consagrados ao longo de décadas justamente na grade da emissora. A trama acompanha Bruceuílis (Edmilson Filho), policial excêntrico do interior do Ceará, que busca recuperar a cabra símbolo de sua cidade após ela ser transportada por acidente pra São Paulo. Na caótica urbe, ele encontra Trindade (Matheus Nachtergaele), um "policial de escritório" nas palavras do próprio, concentrado em desempenhar tarefas administrativas e odiado por seus colegas de grupamento pelo desinteresse em se envolver em ação de rua, e que, escalado pra um flagrante, não deu o peito à bala pra salvar outro policial (Juliano Cazarré, num papel que o tempo revelou ser uma caricatura dele mesmo). A dupla se une pra encontrar o animal e descobrem uma trama maior envolvendo um político (o catilogênico Falcão), numa parceria inusitada que, pra solucionar o caso, enfrenta "altas confusões do barulho" (não resisti).
O filme tem diversas qualidades pra animar uma sessão como as da Tela Quente: joga com elementos perfeitamente reconhecíveis pelo público, a trama é bem amarrada, as petecas da comédia e da ação nunca caem e o ritmo fica sempre aquecido nas piadas com os clichês dos buddy cops. Entre tantas referências, há brincadeiras com Bruce Lee, Jackie Chan, Máquina Mortífera, Hora do Rush, Loucademia de Polícia e Um Tira da Pesada (esta deliciosamente escancarada com a irresistível música-tema Calor do Cão, com Gaby Amarantos e Júnior Groovador, versão tecnobrega de The Heat Is On, de Glenn Frey, trilha do clássico com Eddie Murphy e que coloriu inúmeras chamadas cinematográficas da Globo).Os personagens principais seguem o modelo do gênero de filme, com o mais espevitado na pele de Edmilson Filho, que sempre puxa a ação e a comédia com uma tirada ou movimento brusco, e o Trindade, de Matheus Nachtergale, a quem cabe o papel de ordeiro que... bem... é tão ordeiro que chega a ser "robótico".
Enquanto o jeito de Bruceuílis é amparado por uma bagagem de vida com espaço pra ser retratada - além da família fã de cinema de ação, ser maluco é um jeito dele quebrar a chatice do trampo como polícia na sua modorrenta cidadezinha -, Trindade é só organizado e pacato porque a trama optou por isso pra que fosse possível fazer piadas colocando o personagem em situações incômodas, havendo pouco ou nenhum tempo pra sua personalidade ou bagagem de vida sobrevirem. O que ele fala e faz é exatamente o necessário pra história seguir, a tal ponto "robotizado" que suas falas têm todas as sílabas perfeitamente pronunciadas, de modo que Trindade não se torna completamente apagado (ou irritante) porque Nachtergale tem presença de sobra pra mantê-lo na simpatia. Como é de se esperar numa comédia policial, Trindade dá a volta por cima e, impelido pela nova amizade com Bruceuilis, enfim põe o peito à bala pra solucionar decisivamente o caso e, com isso, conquista alguma consideração entre os colegas de grupamento.
Na época de estreia do filme, escrevi ao Denis contando minhas impressões sobre a fragilidade do Trindade no conjunto e ele concordou, mencionando que outras devolutivas apontavam para a mesma lacuna, como Nachtergaele "salvou a pátria" e agradeceu, reconhecendo equívocos nas decisões de criação. Contudo, algo mais envolvendo o personagem ainda me incomodava e, dois anos após o lançamento, fortuitamente na época que venho resenhando longas de ex-colegas, finalmente consigo me explicar completamente...
Ainda que meticulosamente construído pela trama, Trindade só é reconhecido como policial valoroso ao sair de sua posição nos bastidores e fazer ação de rua tal como os colegas de grupamento que o odeiam. Mas, pelo que é visto, seu grupamento funciona bem, com equipamentos em dia e central organizada, o essencial pra um aparato de segurança pública funcionar com eficiência... e quanto disso não se deve a um trabalho assíduo e meticuloso de bastidores como o de Trindade? Assim sendo, desde quando não há valor no trabalho dele?
Pode-se argumentar que, ao brincar com os clichês de buddy cop, a figura certinha não poderia ser deixada de lado e esse é o caminho pra comédia funcionar com ela. Faz sentido, só que isso revela uma crise: a grosso modo, o olhar do filme pra posições subalternas é de desprezo sendo que o próprio filme está em posição subalterna porque, afinal, ele não existiria se não houvesse os buddy cops gringos!
De fato, não há problema nenhum em fazer uma obra que se coloque como subalterna de outra(s), contudo fica problemático quando se observa como ela encara os valores da que está soberana: colocando Trindade pra fazer o mesmo que os colegas que o odeiam (dar o peito à bala por um parceiro), o filme abraça os valores dos buddy cops gringos e perde valor de sátira. É perfeitamente compreensível como Denis e Vitor amam buddy cops (e sou testemunha de longa data de que amam mesmo) e que foram fiéis ao valor da amizade sempre exaltado nesses filmes (e que enxergo, talvez, como uma celebração da amizade que existe entre eles mesmos), mas o ideário desse tipo de gênero cinematográfico é repleto de falhas e contradições que ainda não foram explorados no cinema brasileiro e dariam muita munição pra comédia.
Falar quando o filme já tá concluído é molezinha, mas convém fazer a provocação: não teria sido um caminho cômico se, lá pelas tantas, não se revelasse que a cobrança de tomar tiro pelo colega fosse conversa mole e, no fundo, os valentes policiais do grupamento de Trindade só tivessem marra? E se Trindade optasse por dar uma banana pra toda a cobrança por valentia e, na mais brasileira malandragem, resolvesse o caso sem sair do escritório, deixando todo mundo no chinelo? Enfim, a graça de Cabras da Peste é verter buddy cops pra um cenário brasileiro, mas não subverter com um olhar brasileiro. Pode ser uma paródia, mas não uma sátira aos buddy cops.
Vale pensar sobre isso considerando como exibição em rede nacional foi frutífera: até o momento, foi a 2ª melhor audiência da Tela Quente em 2023 e uma quantidade considerável de espectadores comentou positivamente a exibição no Letterbox - dados que podem ajudar a abrir uma mais que bem-vinda janela na TV aberta pra produções nacionais na mesma pegada. O Vitor chegou a dizer em seu finado X-Twitter que já tem sinopse pra uma continuação, a qual torço muito pra que seja realizada - e, caras, vocês chegaram mais longe que qualquer outro do AV e conseguiram entrar no gosto da galera com (por que não?) algo simples... Dá pra chegar mais longe.. dá pra expandir na arte...
Ficam meu apoio e meus criptocentavos de colaboração.
O filme tem diversas qualidades pra animar uma sessão como as da Tela Quente: joga com elementos perfeitamente reconhecíveis pelo público, a trama é bem amarrada, as petecas da comédia e da ação nunca caem e o ritmo fica sempre aquecido nas piadas com os clichês dos buddy cops. Entre tantas referências, há brincadeiras com Bruce Lee, Jackie Chan, Máquina Mortífera, Hora do Rush, Loucademia de Polícia e Um Tira da Pesada (esta deliciosamente escancarada com a irresistível música-tema Calor do Cão, com Gaby Amarantos e Júnior Groovador, versão tecnobrega de The Heat Is On, de Glenn Frey, trilha do clássico com Eddie Murphy e que coloriu inúmeras chamadas cinematográficas da Globo).Os personagens principais seguem o modelo do gênero de filme, com o mais espevitado na pele de Edmilson Filho, que sempre puxa a ação e a comédia com uma tirada ou movimento brusco, e o Trindade, de Matheus Nachtergale, a quem cabe o papel de ordeiro que... bem... é tão ordeiro que chega a ser "robótico".
Enquanto o jeito de Bruceuílis é amparado por uma bagagem de vida com espaço pra ser retratada - além da família fã de cinema de ação, ser maluco é um jeito dele quebrar a chatice do trampo como polícia na sua modorrenta cidadezinha -, Trindade é só organizado e pacato porque a trama optou por isso pra que fosse possível fazer piadas colocando o personagem em situações incômodas, havendo pouco ou nenhum tempo pra sua personalidade ou bagagem de vida sobrevirem. O que ele fala e faz é exatamente o necessário pra história seguir, a tal ponto "robotizado" que suas falas têm todas as sílabas perfeitamente pronunciadas, de modo que Trindade não se torna completamente apagado (ou irritante) porque Nachtergale tem presença de sobra pra mantê-lo na simpatia. Como é de se esperar numa comédia policial, Trindade dá a volta por cima e, impelido pela nova amizade com Bruceuilis, enfim põe o peito à bala pra solucionar decisivamente o caso e, com isso, conquista alguma consideração entre os colegas de grupamento.
Na época de estreia do filme, escrevi ao Denis contando minhas impressões sobre a fragilidade do Trindade no conjunto e ele concordou, mencionando que outras devolutivas apontavam para a mesma lacuna, como Nachtergaele "salvou a pátria" e agradeceu, reconhecendo equívocos nas decisões de criação. Contudo, algo mais envolvendo o personagem ainda me incomodava e, dois anos após o lançamento, fortuitamente na época que venho resenhando longas de ex-colegas, finalmente consigo me explicar completamente...
Ainda que meticulosamente construído pela trama, Trindade só é reconhecido como policial valoroso ao sair de sua posição nos bastidores e fazer ação de rua tal como os colegas de grupamento que o odeiam. Mas, pelo que é visto, seu grupamento funciona bem, com equipamentos em dia e central organizada, o essencial pra um aparato de segurança pública funcionar com eficiência... e quanto disso não se deve a um trabalho assíduo e meticuloso de bastidores como o de Trindade? Assim sendo, desde quando não há valor no trabalho dele?
Pode-se argumentar que, ao brincar com os clichês de buddy cop, a figura certinha não poderia ser deixada de lado e esse é o caminho pra comédia funcionar com ela. Faz sentido, só que isso revela uma crise: a grosso modo, o olhar do filme pra posições subalternas é de desprezo sendo que o próprio filme está em posição subalterna porque, afinal, ele não existiria se não houvesse os buddy cops gringos!
De fato, não há problema nenhum em fazer uma obra que se coloque como subalterna de outra(s), contudo fica problemático quando se observa como ela encara os valores da que está soberana: colocando Trindade pra fazer o mesmo que os colegas que o odeiam (dar o peito à bala por um parceiro), o filme abraça os valores dos buddy cops gringos e perde valor de sátira. É perfeitamente compreensível como Denis e Vitor amam buddy cops (e sou testemunha de longa data de que amam mesmo) e que foram fiéis ao valor da amizade sempre exaltado nesses filmes (e que enxergo, talvez, como uma celebração da amizade que existe entre eles mesmos), mas o ideário desse tipo de gênero cinematográfico é repleto de falhas e contradições que ainda não foram explorados no cinema brasileiro e dariam muita munição pra comédia.
Falar quando o filme já tá concluído é molezinha, mas convém fazer a provocação: não teria sido um caminho cômico se, lá pelas tantas, não se revelasse que a cobrança de tomar tiro pelo colega fosse conversa mole e, no fundo, os valentes policiais do grupamento de Trindade só tivessem marra? E se Trindade optasse por dar uma banana pra toda a cobrança por valentia e, na mais brasileira malandragem, resolvesse o caso sem sair do escritório, deixando todo mundo no chinelo? Enfim, a graça de Cabras da Peste é verter buddy cops pra um cenário brasileiro, mas não subverter com um olhar brasileiro. Pode ser uma paródia, mas não uma sátira aos buddy cops.
Vale pensar sobre isso considerando como exibição em rede nacional foi frutífera: até o momento, foi a 2ª melhor audiência da Tela Quente em 2023 e uma quantidade considerável de espectadores comentou positivamente a exibição no Letterbox - dados que podem ajudar a abrir uma mais que bem-vinda janela na TV aberta pra produções nacionais na mesma pegada. O Vitor chegou a dizer em seu finado X-Twitter que já tem sinopse pra uma continuação, a qual torço muito pra que seja realizada - e, caras, vocês chegaram mais longe que qualquer outro do AV e conseguiram entrar no gosto da galera com (por que não?) algo simples... Dá pra chegar mais longe.. dá pra expandir na arte...
Ficam meu apoio e meus criptocentavos de colaboração.
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